Na sua edição de 25 de novembro de 2013 a 01 de dezembro de 2013, o jornal da Unicamp decidiu dar destaque no cabeçalho aos portugueses Elísio Estanque e Susana Durão, ambos professores visitantes na Universidade Estadual de Campinas.
Da entrevista de Elísio Estanque gostaria de destacar o seguinte trecho:
JU – A globalização também passou a exercer pressão e influência sobre o ensino superior. A resposta da Europa a esse processo ficou conhecido como o “modelo de Bolonha”. Essa iniciativa trouxe os resultados esperados?
Elísio Estanque – O chamado “modelo de Bolonha”, criado na sequencia de um conjunto de princípios acordados por ministros e reitores de mais de quarenta países europeus, continha na sua origem alguns aspetos que eram louváveis, pelo menos no espírito que esteve presente nesses encontros. Entre eles o reconhecimento das credenciais acadêmicas desde que cumpridos certos requisitos, como sejam o sistema dos ECTS (sistema europeu de transferência de créditos curriculares) visando à criação de um espaço europeu aberto que facilitasse a mobilidade de estudantes e o reconhecimento das qualificações pelo mercado de emprego europeu. Para além disso, resultou daí uma maior aposta no acesso “massificado” dos jovens ao ensino superior, o que derivou para um padrão “simplificado” (com menor carga horária) em sua formação no nível de graduação, ou seja, o chamado 1º ciclo cujos programas passaram a limitar-se apenas a três anos letivos, excetuando os casos do Direito, Medicina e Arquitetura, onde as respetivas “Ordens” impuseram as suas condições, enquanto as pós-graduações, mestrados (2º ciclo) e doutorados (3º ciclo), se começaram a generalizar. A orientação de Bolonha, que apontava para uma maior proximidade e abertura entre as universidades e a sociedade mais geral (inclusive o tecido empresarial), também pareceu inicialmente promissora, em especial se observarmos que as universidades europeias se burocratizaram imensamente nos últimos sessenta anos e permaneceram fechadas numa certa cultura elitista, herdada de seu passado medieval. O maior problema deste modelo e, creio eu, a razão que o tem levado a uma preocupante perversão dos seus desígnios iniciais, deve-se a que sua implementação no terreno coincidiu com a chegada da crise e a ascensão do neoliberalismo econômico. Sob a batuta do Banco Mundial e das grandes instituições dominadas pelos EUA, o sistema de ensino superior vem privilegiando uma lógica mercantilista e consolidando uma estratificação no sistema universitário internacional cujos critérios (guiados por sistemas métricos e quantitativistas de avaliação) favorecem em particular o modelo americano de ensino superior. Na Europa, as universidades públicas debatem-se cada vez mais com cortes no financiamento público. Despojadas de meios e de recursos são forçadas a usar os pagamentos de mensalidades (as chamadas “propinas”, em Portugal) garantidos pelos estudantes e suas famílias, principalmente nas pós-graduações, como a solução que restou para suprir os sucessivos cortes orçamentais impostos pela política de austeridade que hoje incide violentamente sobre os países do sul da Europa.
JU – Em sua opinião, que aspectos relacionados às políticas brasileiras para o ensino superior deveriam merecer atenção? O Brasil também precisa repensar o modelo de atuação de suas universidades públicas em uma sociedade em transformação?
Elísio Estanque – Sem dúvida, a educação e a tecnologia são a chave do desenvolvimento em qualquer país. Por isso, como já referi, o Brasil deve apostar com urgência na melhora rápida da educação pública. Não ignoro que os progressos nesse campo já são enormes. Mas a universidade pública brasileira só poderá tornar-se o motor do desenvolvimento se, num prazo não muito longínquo, a maioria dos seus estudantes for recrutada entre aqueles que frequentaram escolas públicas no ensino médio. O sistema educativo tem de ser pensado como um todo articulado.
É claro que a formação educacional e a consolidação democrática do Brasil terão de passar por uma maior abertura da universidade pública às classes trabalhadoras e às minorias raciais. Importa para isso ampliar as medidas em curso de “discriminação positiva” e também uma redefinição do papel da universidade, quer no plano da formação científica e tecnológica, quer no campo das ciências sociais e humanas.
O que para mim é preocupante é constatar que as universidades, apesar da “excelência” de muitas delas, são cada vez mais remetidas para um papel subalterno – quando não completamente ignoradas e até asfixiadas financeiramente, como na Europa – em vez de serem chamadas a contribuir para o pensamento crítico, para a inovação e a formação cultural e cívica das atuais gerações. O ensino superior – público e privado – sofre também os impactos destrutivos do mercantilismo desenfreado que vem minando todos os campos da nossa vida coletiva e institucional. Apesar disso, tenho verificado ao longo do ano corrente que, no Brasil, o espaço de debate e de reflexão teórica nos departamentos universitários é bastante mais vivo e intenso do que na Europa. Os grupos a que estou ligado aqui na Unicamp – o Cesit/Instituto de Economia e o IFCH/Sociologia – são exemplos de ambientes acadêmicos onde a pesquisa e a análise científica se conjugam bem com a reflexão e ação prática da universidade por meio de projetos comunitários e junto à sociedade no seu conjunto.
Da entrevista de Susana Durão gostaria de destacar o seguinte trecho:
JU – Em que medida o fenômeno de transnacionalização vem influenciando a formação de forças de segurança em Portugal, na África Lusófona e no Brasil? Que tipos de ensinamentos e de informações são compartilhados?
Susana Durão – No projeto não estamos ainda em condições de saber o quanto pesa, nas polícias nacionais, a formação internacional que faz com que vários dos seus oficiais intermediários tenham experiências transnacionais. Sabemos, todavia, que muitos entre eles poderão vir a ocupar cargos de liderança. Cabo Verde e São Tomé e Príncipe são os casos onde surgem mais exemplos de oficiais formados em Portugal alcançando cargos de direção. Em Cabo Verde, um dos Diretores Nacionais foi aluno do curso de oficiais do ISCPSI. Em Moçambique, Angola e Guiné, as carreiras têm formatos menos burocratizados e são menos previsíveis, o que significa que vamos ter surpresas. O caso do curso de oficiais do ISCPSI – o protocolo para a formação no qual decidimos ancorar a pesquisa – é muito bom para análise, porque se trata de uma formação acadêmica superior de 5 anos, com a possibilidade de os alunos reprovarem apenas um ano. Isto quer dizer que todos os alunos, incluindo os cadetes “cooperantes” africanos, recebem uma educação que incide muito sobre o Direito Penal português, Direitos Humanos, mas também humanidades (sociologia, psicologia, cultura portuguesa).
Existe uma unidade que prevê a avaliação disciplinar e moral, combinada com outras de índole mais desportiva e o encorajamento dos alunos a desenvolver projetos de solidariedade social. Alguns professores são oficiais da polícia portuguesa, outros funcionários do Estado e há lugar para quem venha de fora, como professor universitário. Trata-se de um curso frequentado em regime de internato, mas civilista, marcado por uma ruptura com os princípios militares. A ideia parece ser conciliar a concentração e a abertura de experiências. Defendem, professores e alunos, que este é um instituto de formação integral. O curso de oficiais, em Portugal (que recruta tanto agentes como civis) significou um corte com a herança ditatorial. Ali, acredita-se na formação de oficiais de polícia através do que pode ser designado como “o exemplo da pedagogia e da imagem”. Esta transformação processa-se tanto para dentro da Polícia de Segurança Pública como para a sociedade em geral, procurando-se afastar do imaginário social o policial violento associado ao regime ditatorial. O efeito deste ensino de caráter “nacional” em pessoas que não irão ser oficiais em Portugal, como é o caso dos vários africanos, não deve ser analisado linear ou funcionalmente.
No projeto acreditamos que os processos de formação, aprendizagem e transmissão, bem como os usos de conceitos e as práticas policiais são altamente complexos. Eles envolvem redes dinâmicas e não podem ser analisados descontextualmente. A nossa visão não passa pela avaliação do programa, mas sim pela interpretação das suas várias incorporações e manifestações. As variações inter-pessoais e internacionais merecem ser descortinadas através de cuidadosas e criativas descrições etnográficas.
JU – Qual é a avaliação que a senhora faz dos processos de capacitação e de profissionalização das forças de segurança dos países enfocados pelos seus estudos? Que problemas existentes na formação dos agentes se refletem em questões como violência policial e corrupção, recorrentes no Brasil?
Susana Durão – Os processos de formação e de profissionalização são determinantes para a vida policial, mas não se pode esperar que sejam eles a transformar na íntegra modelos e práticas profissionais. Em vários países, como Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, há uma grande dependência de protocolos internacionais para a formação dos seus oficiais –incluindo países tão diferentes como Portugal, Espanha e Taiwan. Moçambique e Angola já têm academias nacionais para a formação de seus policiais de topo, mas também mantêm protocolos de cooperação fundados na história das suas relações internacionais.
Em quase todos esses países a formação superior vai capacitar os já policiais “de base”, à excepção de São Tomé. Em Portugal, o treino dos oficiais é misto, mas a maioria dos recrutados são à entrada jovens alunos que concluíram o ensino médio. No Brasil, a formação de policiais e o tempo de treino diferem muito nos 26 Estados. Essa formação reflete a separação de carreiras. Nas Polícias Militares os praças e oficiais são mundos à parte; nas Polícias Civis os delegados e agentes não se confundem. Pode parecer contraintuitivo, mas esta interrupção de carreiras, estatutos e poderes pode facilmente levar a perversões e torna ainda mais ambígua essa linha tênue entre legalidade e ilegalidade, entre crime e punição.
Como Luís Eduardo Soares, Sílvia Ramos e tantos outros têm demonstrado, os policiais oscilam entre carrascos e vítimas em um modelo que foi arquitetado durante a ditadura militar, depois de 1968. Porém, uma das mais dramáticas divisões no Brasil, impressa na Constituição em vigor, é aquela que interrompe o ciclo de trabalho entre um policiamento “ostensivo”, executado pela PM, e o policiamento de investigação, levado a cabo pela Polícia Civil. Esta situação justificou recentemente uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 51.
Teremos de aguardar para saber se todo o debate e anseios de mudança vão resistir, invertendo o que foi o recuo de uma promessa na primeira gestão do presidente Lula. Uma de minhas hipóteses é que a formação de policiais em uma cultura militar, que incide na ideia de guerra e de inimigo, está em geral mais alicerçada entre os soldados. Ou seja, é sobretudo neles que se fomenta a prontidão militar para “controlar o crime”, como tem evidenciado Paula Poncioni. Na formação de oficiais é possível que se encontrem variações.
Em uma formação superior, com tempo e influências externas à corporação, não é possível hoje escapar a algum tipo de percepção de direitos humanos e respeito pela diversidade social e étnica. É possível que venham sendo engendradas concepções mais intelectualizadas da autoridade policial como algo que não se confunde com a autoridade das forças armadas. Este não é um processo apenas brasileiro, insere-se numa tendência global. Tais ideias estiveram na base daquilo que nos anos 1980 levou à criação dos policiamentos comunitários em países anglo-saxônicos. Assim se criaram condições de abertura das organizações policiais aos meios urbanos envolventes, garantindo um maior escrutínio social das suas práticas.
Isto teve inevitavelmente um efeito no recuo de formas de corrupção e controle do uso arbitrário da violência. Hoje há que saber o que está operando a esse nível no Brasil e nos outros países pós-coloniais que estudamos. O que se espera dos jovens oficiais? O que esperar desses homens e mulheres com o estatuto de oficiais intermédios e superiores? Poderão alguns destes oficiais ser considerados mediadores e potenciais transformadores dos ethoi policiais?
Estou convencida de que produzir dados comparativos, entre vários países com escassas décadas de transição democrática, nos pode ajudar a iluminar cada caso e a distinguir as respectivas singularidades históricas. A polícia no Brasil sofre de um problema complicado: a ausência de referências positivas no seu passado que ajudem a reformulá-la. Estou do lado de todos os que acreditam que o modelo tem que ser integralmente repensado. Todavia, o futuro passa necessariamente por buscar algumas memórias positivas no passado, mesmo que isso signifique no caso perspectivar contributos pessoais e menos a arquitetura de modelos. Creio que mudanças só terão impacto real com a colaboração e o protagonismo dos oficiais mais qualificados e abertos.
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